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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Do Pau-Brasil abandonado ao Guaraná protegido: de olho na certificação de origem dos produtos brasileiros mais tradicionais

 

Por Rogerio Ruschel

Com 521 anos de história, o Brasil reconhece sua primeira Indicação Geográfica indígena e cria o único “terroir com alma” do mundo: o Tekoha dos Sateré-Mawé.

Meu prezado leitor ou leitora, fico feliz em poder escrever isso: parece que finalmente o Brasil está levando a sério o reconhecimento do valor de seus produtos locais, nativos, que estamos acreditando que vale a pena agregar valor ao nosso próprio patrimônio, especialmente no que se refere a agroalimentos. Esta percepção de valor se torna mais importante quando um produto adquire uma identidade territorial própria, derivada da matéria-prima ou da região onde é produzida, chamada de Identidade Geográfica - IG.  Esse processo de certificação das características exclusivas ou intrínsecas de um produto, serviço ou bem cultural que diferencia este produto, agrega valor de mercado e ajuda a protegê-lo de cópias, através de um selo que garante sua identidade e lhe acrescenta valor como Propriedade Industrial - PI.

Na Europa, nas Américas e na Ásia milhares de produtos se beneficiam de IGs com “sobrenomes” como vinhos Bordeaux, Porto, Chianti e Champagne, queijos Gruyére, Camembert e Cheddar, presunto de Bologna, chá de Darjeeling, etc… No Brasil as IGs são concedidas pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em duas categorias (Denominações de Origem – DO e Indicações de Procedência – IP) totalizam 84 IGs registradas e entre as mais conhecidas estão vinhos do Vale dos Vinhedos, cachaças de Paraty e Salinas, queijos Canastra e Serro, Café do Cerrado Mineiro e cacau do Sul da Bahia.

Fico feliz porque até pouco tempo pouquíssimas pessoas falavam sobre Identidade Geográfica de produtos e serviços como reconhecimento do valor de um patrimônio comunitário ou territorial – e menos ainda a tratavam como um valor de mercado. Este era é um assunto de especialistas, pesquisadores acadêmicos, profissionais de entidades como Embrapa, Epagri, Emater e Sebrae, algumas associações de produtores – e de pouquíssimos jornalistas, entre os quais, sem falsa modéstia, este que vos escreve. Eu venho pesquisando, estudando e reportando sobre este tema há pelo menos 6 anos, criei o WebCanal Tesouros no Fundo do Quintal, hoje com 27 videos com historias de sucesso sobre o tema e escrevi o primeiro livro brasileiro de marketing sobre o assunto, “O valor global do produto local - A identidade territorial como estratégia de marketing”, publicado em 2018 pela Editora Senac. Veja os links no fim desta matéria.

Aumentando o conhecimento

Alguns fatos reforçam minha percepção de que estamos evoluindo. O primeiro é que em dezembro de 2020, quando o INPI comemorou 50 anos, a Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia (SEPEC/ME) lançou a Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual (ENPI) que “incentiva a criatividade e os investimentos em inovação, visando ao aumento da competitividade e ao desenvolvimento socioeconômico do Brasil” segundo o órgão. Como qualquer iniciativa que modernize a máquina e agilize ações da iniciativa privada, isso é muito bemvindo.

O segundo fato: durante este silencioso e pandêmico ano de 2020, 10 novas IGs foram reconhecidas e 19 processos de pedidos de registro deram entrada no INPI; 29 IGs foram mobilizadas em um ano – contra apenas 4 novas IGs aprovadas em 2019.  Assim fechamos o ano de 2020 com 84 IGs registradas, sendo 23 Denominações de Origem (14 nacionais e nove estrangeiras) e 61 Indicações de Procedência nacionais. Mas poderiam (e poderão) ser centenas.

Um terceiro fato:  já no início de 2021 o INPI publicou a primeira edição do Manual de Indicações Geográficas com recomendações aos usuários e examinadores do INPI, detalhamento sobre os procedimentos e diretrizes de exame, bem como definições técnicas relevantes para a matéria. Certamente isso vai acelerar a burocracia de novos processos e o quadro abaixo deixa isso claro: o INPI tem como meta aprovar 22 IGs em 2021.

 

As IGs aprovadas no ano 2020 foram:

·       Campos de Cima da Serra - Santa Catarina/Rio Grande do Sul (DO): queijo artesanal serrano

·       Campanha Gaúcha - Rio Grande do Sul - (IP): vinho tinto, branco, rosado e espumantes – veja em  http://www.invinoviajas.com/?s=campanha

·       Mantiqueira de Minas - Minas Gerais - (DO): café verde em grão e café industrializado em grão ou moído

·       Novo Remanso - Amazonas - (IP): abacaxi

·       Caicó - Rio Grande do Norte - (IP): Bordado

·       Porto Ferreira - São Paulo - (IP): cerâmica artística

·       Terra Indígena Andirá-Marau - Amazonas/Pará - (DO): guaraná nativo e bastão de guaraná – (primeira indicação geográfica concedida a um território indígena) – veja em http://www.invinoviajas.com/2020/12/warana/

·       Campos das Vertentes - Minas Gerais (IP): café verde, café industrializado em grão ou moído

·       Matas de Minas - Minas Gerais (IP): café em grãos cru, beneficiado, torrado e moído.

·       Antonina - Paraná (IP): bala de banana

Ao fim de mais de 520 anos de existência, o Brasil começa a reconhecer que seus produtos nativos tem valor, e que este valor pode ser ampliado e protegido com uma identidade geográfica a um produto local, “colonial” ou “caipira”.

Demoramos a aprender esta lição que começou com um exemplo clássico de desperdício com a primeira identidade geográfica potencial para um produto brasileiro realmente competitivo e exclusivo: a madeira denominada com o nome de pau-brasil. O pau-brasil ((Paubrasilia echinata) foi surrupiado da natureza e exportado para a Europa via Portugal por muitas décadas no século XVI. E quais os resultados? Hoje o pau-brasil está em listas de espécies ameaçadas de extinção, continua desconhecido e desrespeitado pelos brasileiros e não tem “utilidade” commercial; talvez porque esta árvore tenha sido ignorada como patrimônio comunitário entre 1501 e 1978, quando finalmente foi declarada patrimônio e árvore nacional e formalmente protegida por lei.  

  

Por que e como isso aconteceu? Pela sua madeira e pela resina vermelha que era utilizada na produção de um corante para tecidos, o pau-brasil foi valioso enquanto não se pagava por ele, chegou a construir uma boa imagem de produto, mas não acrescentou um centavo aos brasileiros natos, os indígenas que eram os proprietários deste recurso. Na verdade os indígenas eram contratados para derrubar as árvores de pau-brasil (que chamavam de ibirapitanga) com pagamento irrisório por escambo de segunda classe.

Apenas como curiosidade: o primeiro português a ter o direito de explorar o pau-brasil, em 1501, foi Fernão de Loronha que havia “ganho” a ilha de São João (atual Fernando de Noronha) como sua capitania. Mas o tal Loronha não explorou as árvores porque além de dar trabalho (ainda não haviam escravos) ele ainda tinha que dar todos os lucros para a Coroa portuguesa. Então preferiu investir em açúcar no continente. Dos males, talvez o menor, porque se tivesse explorado o pau-brasil, talvez Fernando de Noronha tivesse se tornado um imenso deserto e não seria o paraíso preservado que é hoje.

O pau-brasil poderia ter sido registrado, protegido e valorizado com uma Denominação de Origem Pau-Brasil, e hoje teríamos um excepcional produto de exportação: uma resina natural, com produção sustentável, acompanhando a cor da moda, e talvez com o aval de indigenas como elemento promocional…  

 

Mas antes tarde do que nunca: estamos começando a descobrir o valor de nossos produtos com origem e identidade com 521 anos de aprendizado, às portas da viabilização de um acordo Mercosul com a União Europeia pelo qual todas as IGs serão protegidas nos dois blocos e poderemos correr o risco de ser engolidos por produtos europeus.

Se o Pau-Brasil foi ignorado como patrimônio nacional por mais de 450 anos, podemos recuperar parte da dignidade dos produtos tupiniquins e da cultura indígena com o recente reconhecimento pelo INPI da Terra Indígena Andirá-Marau como a primeira Indicação Geográfica (IG) de Origem concedida a um povo indígena brasileiro, em razão de dois produtos locais: o waraná (um guaraná nativo) e o pão de waraná (bastão de guaraná).


O reconhecimento foi concedido no dia 20 de outubro de 2020 à região denominada Terra Indígena Andirá-Marau, com 8.000 Km2, localizada na divisa dos estados do Amazonas e do Pará, como uma Indicação Geográfica (IG) do tipo Denominação de Origem – DO. Esta classificação considerou que ficou provado que o waraná, como é chamado pelos indios Sateré-Mawé, apresenta características únicas devido ao bioma local e o “saber-fazer” do povo indígena com seu modo próprio de cultivo e obtenção do produto. Segundo a crença ancestral dos Sateré-Mawé, sua sabedoria reside exatamente no waraná, a planta que contém sua essência; eles se consideram “filhos do guaraná”.

Ou seja: este guaraná só existe por causa do terroir Andirá-Marau. Mas como não somos franceses e o conceito envolve tradições e crenças que vão além de considerações edafoclimáticas, vou sugerir denominar este conceito de Tekoha, o terroir com alma. Tekoha é uma expressão que significa aldeia guarani, mas também o lugar do modo de ser guarani, sendo que modo de ser (tekó) é entendido como um conjunto de preceitos para a vida, em consonância com a herança cosmológica herdada pelos antigos guaranis. Tekohas são as áreas cerimoniais da tradição guarani, o centro das atividades xamânico-religiosas da comunidade. Então  o Tekoha dos Sateré-Mawé é o primeiro “terroir com alma” tropical. Enfim: em 521 anos de história evoluímos do pau-brasil quase extinto como patrimônio de valor para o waraná, o Guaraná protegido e valorizado como terroir de uma etnia, o Tekoha Andirá-Marau. E fique sabendo que o waraná é tão valorizado, meu caro leitor ou leitora, que é vendido na Europa pela empresa parisiense Guayapi, especializada em produtos étnicos, e pelo Salão do Gusto Tierra Madre, do Slow Food, por 68,50 Euros uma latinha. Isso, claro, antes de ter sido certificado como um produto local que adquiriu valor global.

Para saber mais:

* WebCanal Tesouros no Fundo do Quintal - https://www.youtube.com/channel/UCc4c2FU6Z88_XU_2I2lFbmA

* Livro “O valor global do produto local” - https://www.essentialidea.com.br/portfolio-item/o-valor-global-do-produto-local/

* Artigos sobre Identidade Geográfica http://www.invinoviajas.com/?s=identidade+geo

Rogerio R. Ruschel (rogerio@essentialidea.com.br) é jornalista, professor, palestrante e autor e editor de livros e escreve sobre produtos com identidade e origem


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