Por Rogerio Ruschel (*)
Quando estive lá pela primeira vez, em 2010, já conhecia a história e por
isso me pareceu ver o fiscal com forte sotaque português, do alto de sua farda
de autoridade, gritando para os barcos que chegavam apinhados de mercadorias:
”Ver o peso! Ver o peso! Ver o peso!”.
Na verdade essa deveria ser a cena provável em 1688 naquele local onde eu
agora tentava entender o que estava acontecendo: a Casa do Haver-o-Peso no cais implantado na
confluência do Rio Guamá com a Baía de Guajará da então Feliz Luzitânia, hoje Belém, Pará.
Pois é: os portugueses, índios, espanhóis, negros, caboclos, mestiços e
brasileiros resultantes de todas estas etnias, não tinham como escapar:
chegando com os barcos repletos de produtos dos rios, da floresta ou da
agricultura, tinham que pesá-los e conforme o peso, pagar os devidos impostos para a Capitania do Pará.
A Casa do Haver-o-Peso
funcionou até 1839 quando foi desativada e arrendada para a venda de peixe
fresco. Em 1847,com o término do contrato de arrendamento, foi demolida e em seu lugar iniciada
a construção do Mercado de Peixe (ou de Ferro) abaixo, e do Mercado da Carne (ou Municipal).
Hoje, mais de 320 anos depois, o Mercado Ver-o-Peso
continua a ser uma feira livre muito doida que mistura pessoas, culturas,
cores, sons, sabores e mercadorias, mas foi crescendo com a cidade e se tornou
um grande Complexo que abrange a Feira do Açaí; a Ladeira do
Castelo; as praças do Relógio, do Pescador e dos Velames; o Solar da Beira e o
Mercado Municipal. Todo este conjunto
foi tombado como Patrimônio Histórico Nacional pelo IPHAN em 1977.
O Mercado de Ferro (ou Mercado do Peixe) foi construído pela empresa La Rocque Pinto &
Cia, vencedora de uma concorrência pública realizada em 1897, e foi todo
transportado da Inglaterra (de onde veio também o relógio da Praça do Relógio - veja abaixo) e
montado em Belém.
O povo na época se exibia
muito com esta origem “nobre” do Mercado do Peixe da cidade. Com suas quatro
torres e elegantes escadas em espiral (abaixo), sua estrutura metálica de zinco veille-montaine seguindo a tendência
francesa de art nouveau da belle époque, cobre uma área de 1.197 m² e pesa
cerca de 1.130.000 toneladas e foi inaugurado em 1901. (Para ver outro mercado similar a este,
construído pelo autor da Torre Eiffel em Dijon, França, acesse http://invinoviajas.blogspot.com.br/2013/05/feira-livre-de-dijon-produtos-naturais.html)
Então vamos ao conteúdo: os peixes - peixes do mar
e dos rios amazônicos, como o pirarucu, meio avermelhado e que deve ser parente
do bacalhau, mas é mais saboroso do que ele; é o maior peixe de escamas do Brasil
chegando a pesar 80 quilos e pescado com anzol! Mas tem também tucunaré, tamauatá, caranguejos,
xaréu, curimba, aruanã, cachorra, corumbatá, jaú, mantrinxã, piaus, surubim,
pirara e muitos outros peixes com nomes indígenas sonoros e carregados de
poesia.
A feira livre do Ver-o-Peso é a maior da América Latina – e provavelmente a
mais caótica também, um verdadeiro caos organizado. Como não poderia deixar de
ser, tem de tudo, de todo jeito, com todas as cores, aromas e sabores. Tem
jambu, um folha conhecida por deixar a boca dormente e que está presente em
vários pratos da culinária do Pará.
Tem
farinhas com texturas e sabores variados (veja abaixo), sementes, cascas e pós,
verduras, palhas (muitas palhas com muito trabalho criativo), plantas
estranhas, pinturas, cerâmicas, cereais, artigos artesanais, pimentas - muitas pimentas, algumas
muito furiosas, como esta ilustrada abaixo.
Tem frutas amazônicas criativas no nome, cor e
sabor como graviola, tucumá, piquiá, cupuaçu, mangaba, muruci, uxi, sapotilha,
biribá, guaraná, pupunha, castanhas, bacuri. E tem o Açaí (abaixo), uma fruta de
palmeira que chega em barcos cedinho de manhã, coberto com folhas de arumã:
sozinho, o Açaí tem uma feira inteira para ele no Ver-o-Peso – o que não
espanta, porque no Pará o Açaí tem
poesia, pintura, lendas e até mesmo uma dança exclusiva para ele.
O
Mercado Ver-o-Peso tem outras maravilhas esperando por você: a medicina
popular. São dezenas de barracas oferecendo plantas, cascas, raízes e ervas
aromáticas e produtos prontos como remédios, unguentos, cremes e sabonetes florestais (veja abaixo). Vendedores
podem fazer o papel de médicos ou benzedores – ou quem sabe magos da floresta?
Se você tem um problema, no Mercado Ver-o-Peso você vai encontrar a solução. Tem até viagra natural!
Mas o
entorno do Complexo Ver-O-Peso é também riquíssimo em termos arquitetônicos,
históricos e antropológicos, vamos dizer assim. No cais nas margens, o que se
vê é uma floresta de mastros, bandeiras, bandeirolas, redes e cordas.
Em terra, ao redor do complexo, estão sobrados e
sobradões portugueses (alguns disfarçados de varejos populares), a Igreja de
Santo Alexandre – uma capelinha de taipa de 1653, a Igreja Matriz de Belém –
também uma capelinha de taipa de 1771, e um forte construido em 1616.
Agora imagine esta região recebendo mais de um
milhão de pessoas durante a festa religiosa Cirio de Nazaré (detalhe abaixo), a maior do Brasil!
É verdadeiramente um espanto, um feito do qual os paraenses devem se orgulhar
muito.
Um
almoço no Complexo Ver-O-Peso é no minimo uma atração turística, desde que você
seja cuidadoso com as pimentas. Você pode pedir por exemplo, um prato com arroz coberto por vatapá,
maniçoba e caruru. O caruru paraense é uma espécie de pirão cremoso que tem por
cima camarão seco e salgado com o bonito do jambu (abaixo), a tal folha que deixa a língua
dormente nas laterais.
Você
pode pedir tacacá – muito popular – que é a combinação de goma de tapioca,
caldo de mandioca (tucupi), jambú e camarão seco é servido numa cuia (veja abaixo). Ou o tucupi tambem vendido em garrafas (abaixo). E para
harmonizar talvez um suco natural, de uma fruta exclusiva do Pará, algo assim
como um suco de bacuri?
O
Mercado Ver-o-Peso foi bastante valorizado durante o Ciclo da Borracha, entre o
final do século XIX e começo do século XX, quando a cidade de Belém teve grande
importância comercial e internacional e sofreu grandes mudanças urbanísticas.
São deste periodo, prédios históricos como o Palacio Lauro Sodré (atual Museu
do Estado do Pará), o Teatro da Paz (abaixo) e o Palácio Antonio Lemos.
(*) Rogerio
Ruschel é jornalista, consultor em sustentabilidade com 5 livros e 28 estudos e
gosta de mercados livres e cultura popular.